O que é um nome próprio, do Ceará à Tailândia
Tristão de Arireia, Hantaley e o poder de nomear as coisas
Não conheci nenhum dos meus bisavôs. Isso não é muito dramático, quem é que vive o suficiente no Brasil dos anos 1990 para conhecer a bisneta, e é menos dramático ainda se o leitor for informado que essa bisneta tem apenas o lado materno da família para acompanhar. Pai ausente, duas vezes menos chance de conhecer os anciões que, ao decidirem se casar e formar família, acabaram levando à minha existência. Todo o caminho – conhecer, casar, ter filhos, um filho específico, esse filho conhecer a filha de outra pessoa, que também tem pais – necessário para encher os galhos das árvores genealógicas. É muita energia, são muitas rodovias cruzadas, cafés passados e pães mastigados enquanto se olha o sol nascer pela janela da cozinha. Acho especialmente curioso quando pessoas de estados totalmente diferentes se conhecem, tendo percorrido o caminho mencionado anteriormente, que acaba sendo intensificado pela dificuldade de atravessar os milhares de quilômetros do Brasil, a pobreza, as bolotas de poeira, dormir e acordar nos bancos duros dos carros. Sei racionalmente que as várias mudanças dos meus avós têm a ver com a busca por emprego, que só cessou com as políticas migratórias de povoamento do norte, minha mãe e avó chocadas por existirem casas de madeira, muito mais comuns em Porto Velho do que em Fortaleza. Tendo sido educada sobre a história do país e sabendo contar a História com H maiúsculo, sigo achando que existe algo de misterioso nos caminhos micro dessas trajetórias, algo que não sei explicar bem, mas que dá um tom romântico a todos os acasos que precisam acontecer para que se forje o laço entre dois desconhecidos.
Dessa perspectiva, meus antepassados configuram desconhecidos para mim? Eu sei de fatos soltos, remendados de acordo com o que fiquei sabendo por alto, uma costura artesanal até demais. Eu tenho acesso ao nome completo e onde nasceram, mas, ainda assim, jamais alcançarei as informações que considero mais importantes: qual o número do sapato? Era divertido ou um chato completo? Como era a risada? Gostava de cachorro? É engraçado pensar nessa subjetividade que nos escapa, não existe cartório no mundo que documente o sabor favorito de sorvete das pessoas, é algo que você só extrai da convivência. Digamos que não é um dado importante o suficiente do ponto de vista de gestão territorial, e tudo que não é relevante o bastante para se tornar uma categoria estatal acaba sendo condenado à morte material e simbólica, caso você não tenha os recursos suficientes para manter a memória acesa. Esse é um dos objetivos desta newsletter, uma espécie de investigação pessoal que registre as memórias de pessoas absolutamente desimportantes do ponto de vista jurídico, financeiro e político. No entanto, são essas mesmas pessoas, alheias à fama e aos privilégios, que seguem existindo na memória coletiva da minha família, porque se tornaram personagens, mais do que gente de verdade; existem lendas sobre elas, histórias absurdas, milagres escandalosos que revelam um pouco mais da personalidade de quem conta e de quem (supostamente) viveu aquilo. Mais do que alcançar a verdade, me interessa a arte de narrar, as suspiradas que criam tensão, a voz que se eleva, o suave assentir com a cabeça de quem também testemunhou as histórias daquele rudimentar herói cearense. Muito melhor quando alguém tem coragem o suficiente para contestar, não foi bem assim, não, e todas as horas de argumentos daí derivados, restando às novíssimas gerações eleger a versão que mais lhes convém.
Eu consigo arriscar um pouco da personalidade do meu bisavô, pai do meu avô, por conta das várias histórias que ouvi. Meu avô foi o primogênito de três irmãos, todos com nomes de três letras, revelando que meu bisavô deve ter sido metódico o bastante para talvez ser considerado portador de Transtorno Obsessivo Compulsivo pelos analistas de Instagram. Rui era o nome do primogênito em questão. Tendo debutado como pai, meu bisavô tentou fundar uma nova família: não lhe interessava mais continuar a linhagem da Cunha Ramalho. Eram novos tempos, os anos 1940 mereciam um ar de frescor que sobrenome nenhum seria capaz de evocar. Meu bigodudo bisavô foi ao cartório, querendo batizar seu filho, igualmente bigodudo no futuro, como Tristão de Arireia. Eu daria coisas que nem tenho para que algum físico consiga enfim criar a máquina do tempo para me tornar testemunha material desse episódio, já que meu avô pouco contribuiu para saciar minha curiosidade: que roupa meu bisavô estava usando? Estava chovendo? Ele soletrou ARIREIA? Eu estou escrevendo certo ou tem acento no E? Como o tabelião reagiu? Ele revirou os olhos? E, mais importante, de onde meu bisavô tirou esse nome?
As burocracias de Estado não permitiram a nosso herói concretizar seu sonho, uma família autenticamente brasileira, nascida no interior do Ceará. O tabelião argumentou avidamente a pouca racionalidade de se criar um novo sobrenome – isso não existe pra lá, isso é um absurdo pra cá. Gosto de pensar numa discussão acalorada, meu bisavô exasperado, desabotoando o primeiro botão da camisa, tentando em vão fazer o cartório alcançar a poética desse nome impossível enquanto tirava o relógio para partir para a disputa física. Uma pesada chuva chicoteando o telhado daquela instituição empoeirada. O cachorro caramelo se refugiando na porta. Mas não há força moral nem poder de persuasão que instigue um cartório a se curvar às vontades incomuns de um cidadão desconhecido, e de Tristão de Arireia fez-se Rui da Cunha Ramalho.
Não me lembro quando passei a me revoltar com a injustiça sofrida pelo meu finado bisavô ao ser confrontado pelos procedimentos mais elementares que revelam os poderes incontestes do Estado-nação. E logicamente isso se repete ao redor do mundo: existe uma ilha tailandesa cuja população é originalmente composta por um povo nômade que subsiste da pesca. No processo de constituição do Estado Tailândes, no momento de registro desses habitantes, ficou claro que ninguém tinha um sobrenome definido. Não fazia sentido para aquela configuração social específica. Corre na boca miúda que o Estado, então, batizou a todos com o mesmo sobrenome: Hantaley, que significa, em uma tradução livre, do mar. A primeira vista parece legítimo e muito bonito, mas isso revela, na verdade, o passo a passo que envolve gerir um território. Nomear e produzir categorias é essencialmente um poder de governo, já que criar uma nação e fortalecer uma identidade nacional perpassa por esse percurso burocrático que é, na verdade, nada mais do que inventar coisas. Esse povo nômade e pescador passou a existir formalmente apenas no momento em que um documento foi emitido, atestando o poder teológico de criação do Estado cartorial. A eles, restou o enquadramento jurídico no equivalente tailândes ao Registro Geral. Ao meu bisavô, o aceite, ainda que inconformado, a uma regra contábil, administrativa e pouco dada às aventuras literárias dos sujeitos comuns.
Mais de oitenta anos depois, tendo cruzado caminhos, barreiras e classes sociais; tendo surgido a internet e as milhares de redes sociais; tendo me inscrito em uma rede social para aspirantes a escritores; finalmente achei o nome do meu empreendimento autobiográfico, enquanto tomava um café com um dos meus melhores amigos. Apesar de não acreditar em vocação, em destino ou qualquer tipo de ligação transcendental entre membros de uma mesma família, algo me diz que tenho muito a ver com esse rudimentar herói cearense. Por isso, de algum modo sabendo que meu bisavô e meu avô achariam importante um certo grau de criatividade e autonomia no processo, adequei ao meu gênero – de Tristão de Ariréia, de Rui da Cunha Ramalho, de Maria Ilma e Thais de Freitas, fez-se Tristonha de Ariréia.
Larissa, você é incrível!
Amei!!!!